Chegou o temido dia da perda de um dos mais brilhantes historiadores do século. Nascido em 1917 e falecido nesta manhã, aos 95 anos de idade, Hobsbawm inspirou e continuará inspirando muitos jovens historiadores. Confesso que minha esperança era que vivesse mais alguns anos e, com ousadia, ainda esperava poder vê-lo ao vivo, transmitindo sua valiosa experiência. O historiador, no entanto, não deixou de produzir história até o fim dos seus anos. Publicou livos, concedeu entrevistas, palestrou, até que um cansativo período de pneumonia o levou de nós, este ilustre intelectual.
Abaixo, segue um texto que produzi há cerca de um mês, que, na verdade, se trata de uma síntese de um capítulo de Marcos Martins sobre o historiador e algumas observações acerca da relação de Hobsbawm com o tema da História do Tempo Presente.
Abaixo, segue um texto que produzi há cerca de um mês, que, na verdade, se trata de uma síntese de um capítulo de Marcos Martins sobre o historiador e algumas observações acerca da relação de Hobsbawm com o tema da História do Tempo Presente.
Eric John Earnest Hobsbawm
Uma pessoa incomum: é a expressão escolhida pelo Doutor em História Econômica pela USP, Marcos Lobato Martins, para caracterizar o renomado historiador do século XX. O artigo elaborado sobre Eric Hobsbawm está no livro Historiadores do Nosso Tempo, organizado por Marcos Antônio Lopez e Sidnei Munhoz. Por incomum, Martins se refere ao leque curioso de temas escolhido pelo intelectual britânico ao longo de sua trajetória acadêmica que se inicia na década de 1950. Hobsbawm trata de assuntos como bandidos, jazz, comunismo, guerra, democracia e, assim, influenciou e influencia estudiosos das áreas humanas em grande parte do globo.
Lúcido, aos noventa e cinco anos (completados no último nove de junho de 2012), era altamente cotado pelos jornalistas a cada episódio de um mundo em constante transformação, perturbado por crises econômicas, desigualdade social, turbulência política e cultural.
De família judia, o menino Eric Hobsbawm e sua irmã moraram com os pais em Viena e Berlim durante a infância. Órfão de pai e mãe aos catorze anos, ele e a irmã foram criados a partir de então pelos tios, e em 1933, na ascensão de Hitler, mudaram-se para a Inglaterra (MARTINS, 2010). Foi em Cambridge que Hobsbawm obteve sua formação em História, curso fundamental para jovens britânicos que se interessavam pela vida pública. O interesse do autor por história, no entanto, cresceu na adolescência ao entrar em contato com os estudos de Marx e Engels, como explica Martins. Ainda na graduação, Hobsbawm e seus colegas enriqueceram os estudos do curso de História com o interesse pela discussão com colegas doutorandos, grupos de estudos, e com a busca de fontes históricas, livros e periódicos disponíveis na instituição. Hobsbawm chamou esse processo, muito bem aproveitado por ele e seus colegas, de “programa de autoeducação” naquela universidade que lhes oferecia tantos recursos .
A importância das contribuições de Hobsbawm começa a ganhar solidez na década de 1950, quando (reunido com historiadores marxistas como Christopher Hill, Rodney Hilton, Edward Thompson e outros) funda a revista Past and Present em 1952. Com Martins, novamente, é possível conferir a significância deste trabalho e deste grupo na mudança da historiografia anglo-saxônica (MARTINS, 2010). Na década de 1950/60, Hobsbawm começa a desenvolver os estudos que mais tarde lhe garantem bastante prestígio:
Foi o tempo dos estudos que focalizavam os trabalhadores e os camponeses diante do processo de expansão da modernidade capitalista. (...) A partir dos anos 1960 e 1970, Hobsbawm também recebeu reconhecimento como autor de ótimas sínteses da história contemporânea, que viraram manuais didáticos bastante usados por estudantes no mundo inteiro. (MARTINS, 2010, p.75).
Foi filiado ao Partido Comunista britânico de 1936 a 68. Em 1956, Thompson e Saville decidem sair do partido. Mesmo com a evasão de 21% dos seus quadros entre fevereiro de 1956 e o mesmo mês de 1957, historiadores como Hobsbawm e Maurice Dobb continuaram entre as exceções que não abandonaram a organização, embora mantivessem críticas à postura dos dirigentes comunistas ingleses (MÜLLER e MUNHOZ, 2010).
A importância de Hobsbawm para a renovação da abordagem marxista na história:
Hobsbawm trouxe aportes importantes para a discussão de dois problemas centrais no pensamento marxista, a saber: 1) a formação da consciência política das classes sociais; e 2) a construção/difusão das ideologias e tradições nacionais, recursos necessários ao controle da sociedade pelo Estado. Ao abordar esses problemas, Hobsbawm contribuiu para melhor defini-los, além de lançar luzes sobre as dinâmicas e mediações sócio-culturais envolvidas. Não surpreende, portanto, que sua obra (e a dos colegas da História Social inglesa) seja lida com tanto interesse pelos sociólogos, antropólogos e politólogos (MARTINS, 2010).
Sobre a preferência de Hobsbawm pelo tema campesinato, por exemplo, o autor demonstrou o quanto a crítica esquerda ao seu trabalho estava equivocada ao julgar as massas camponesas como sendo reacionárias e conservadoras como regra geral. O tema de Hobsbawm foi mal visto, exatamente pelo fato de que o próprio Marx via o segmento campesino como arcaico se comparado à classe operária. Martins mostra que Hobsbawm rebate essa ideia e demonstra que a resistência dos camponeses fora, no entanto, bastante ativa e que, inclusive, “alimentaram expectativas de construção de uma ‘nova sociedade’” (MARTINS, 2010, p. 77).
Hobsbawm tampouco desampara os trabalhadores das atividades industriais em seus estudos. Em um trabalho publicado no primeiro número da revista Past and Present, anteriormente citada, o historiador britânico defende um movimento de revolta denominado “quebra de máquinas” e, ao contrário do que era defendido, afirma terem sido movimentos pensados e não “explosões espontâneas da ira de trabalhadores incapazes de entender, racionalmente, a realidade de sua época” (MARTINS, 2010, p. 79). O autor explica que Hobsbawm importantemente colocou os operários como negociadores de uma fase árdua de substituição da mão de obra por máquinas, que criavam desemprego e degradação das condições de vida dos trabalhadores. As negociações foram a conquista destes eventos anteriormente considerados arruaceiros.
Em seu artigo Os destruidores de máquinas, Hobsbawm esclarece esta questão. Explica que a quebra de máquinas não era uma arruaça irracional, de revolta contra as máquinas simplesmente. O movimento era organizado e, como colocou Martins, tinha seus propósitos. Era útil “quando tinha que ser feita pressão sobre os patrões”, mas uma pressão imediata, com resoluções imediatas e não para pressioná-los constantemente. Como exemplo, esses movimentos repentinos de revolta eram aplicados quando havia súbita baixa nos salários e outras medidas altamente prejudiciais aos empregados. Além disso, com a pressão sobre os empregadores, garantiam a solidariedade dos demais trabalhadores, que consiste “o fundamento do sindicalismo eficaz”. Esse método funcionava ainda mais eficazmente nas pequenas propriedades, onde qualquer destruição material significava grande perda ao empregador (HOBSBAWM, 1981, p.19).
Além disso, Hobsbawm defende que até o fim do século XIX, a classe operária não era um grupo sólido, definido. Era um aglutinado de “pequenos mundos”, como denomina Martins, grupos de “mineiros, tecelãos, sapateiros, alfaiates, marinheiros, etc. Não havia uma classe operária nacional (...) aglutinada por meio da consciência de um destino comum pela combinação de fatores econômicos, políticos, sociais e culturais” (MARTINS, 2010, p.80), como aconteceu mais tarde, nos anos 1880/90, quando operaram a ruptura com a época do cartismo. Ainda defende que a formação da classe operária dá mérito ao trabalhador (que entendeu as mudanças que afetaram o seu cotidiano) e não somente aos sindicatos.
Hobsbawm no Brasil
Como descrito anteriormente, Eric Hobsbawm iniciou suas produções bibliográficas na década de 1950. No entanto, é só a partir da década de 1970 que o Brasil volta os olhos para o historiador. Dentre as 23 obras publicadas aqui, estão Bandidos (1975); Mundos do trabalho (1987); História do marxismo (com 12 volumes, de 1979); Ecos da Marselhesa (1996); A Era das Revoluções, do Capital, dos Impérios e dos Extremos (de 1979 a 1994); Globalização, Democracia e Terrorismo (2007); Como mudar o mundo (2011) e outras.
Hobsbawm no tempo presente
Pensar em um historiador da qualidade de Hobsbawm e lê-lo tornava-se mais prazeroso ainda quando recordado o fato de tê-lo ainda conosco, vivo. A perda desse homem ímpar, neste dia de hoje, tira a esperança de muitos jovens historiadores, como eu, de um dia poder vê-lo discursar, ensinar, transmitir conhecimento pessoalmente. Ao escrever este trabalho há alguns meses, falava desta possibilidade que estava se esvaindo, com o passar dos anos de vida deste lúcido ancião, e de sua importante opinião, frequentemente requisitada por jornalistas a cada novo acontecimento da História.
O historiador naturalizado britânico tornou-se especialmente cotado para opinar sobre acontecimentos do tempo presente. Lúcido, ativo academicamente e experiente, Eric J. Hobsbawm ainda participava de entrevistas, publicava produtivas obras e comparecia em eventos, reuniões e encontros .
O historiador naturalizado britânico tornou-se especialmente cotado para opinar sobre acontecimentos do tempo presente. Lúcido, ativo academicamente e experiente, Eric J. Hobsbawm ainda participava de entrevistas, publicava produtivas obras e comparecia em eventos, reuniões e encontros .
Entre historiadores, é conhecido o péssimo hábito jornalístico de demandar previsões dos estudiosos da História. Martins esclarece a visão de Hobsbawm sobre o tema: “profecias mal atravessam horizontes estreitos. (...) não é papel do historiador bancar o visionário ou a pitonisa”. Entretanto, entende que o historiador tem a sua contribuição para o debate público:
Desde que construa diagnóstico cuidadoso, a salvo das euforias e iras momentâneas, moldado na abordagem da longa duração, que possibilite identificar: 1) os problemas agudos que o mundo vem enfrentando; 2) as soluções tentadas e que fracassaram; e 3) as alternativas de ação e organização que quedaram vencidas na trajetória da história (MARTINS, 2010 p. 83).
A exemplo, analisemos sua perspectiva sobre a posição hegemônica dos Estados Unidos. Anos atrás, comentava-se sobre a possibilidade de a China ultrapassar os Estados Unidos em questão de dominação política. Hobsbawm, em entrevista à Folha de São Paulo revelara que não acreditava que o mundo fosse dominado por uma só potência, seja qual fosse o detentor deste domínio. Seu prognóstico baseava-se n forma que os Impérios foram guiados ao longo da história. O Império Romano, segundo ele, não reinava sozinho, dividia poder com os persas e os chineses. O Império Britânico preocupava-se com suas demandas e não com uma dominação global (MARTINS, 2010, p 85). Segundo Martins, Hobsbawm defende que a China tem consciência do seu poder, mas não aspiram ao poder expansionista e a imposição de seu modo de vida. Quanto aos Estados Unidos – e a sua expansão territorial baseada na excepcionalidade do seu povo e à missão que acreditavam ter diretamente de Deus, o Destino Manifesto –, Hobsbawm defende que sem o seu domínio militar extraordinário e a aprovação e consenso dos países que ocupa, os Estados Unidos não teriam o poder que detêm atualmente. É sobre esta nação e o significado deste poder no novo milênio que se trata o próximo tópico.
Hobsbawm e os Estados Unidos da América no novo milênio
Onze de Setembro de 2001: nos Estados Unidos, aviões sequestrados atingem e derrubam as Torres Gêmeas (World Trade Center), símbolo do comércio nova-iorquino e do sucesso do capitalismo estadunidense. O ataque causou cerca de três mil mortes e outros milhares feridos. A catástrofe foi transmitida quase inteiramente em tempo real por canais de televisão em grande parte do mundo. As imagens chocaram a população mundial e o ataque, alegadamente causado pela rede terrorista Al-Qaeda, despertou uma onda de conflitos entre Estados Unidos e países do Oriente Médio, com o propósito de aniquilar as ameaças terroristas. Desde então, os Estados Unidos mantém suas tropas no Oriente Médio. Parte desses serviços militares é terceirizada, constituindo centenas de empresas que hoje fornecem apoio bélico e estratégico aos EUA em suas ocupações. O país dispensa grande parte do seu orçamento ao setor militar e é a partir deste contexto que foi escolhido o tema de pesquisa do mestrado (Intensificação da privatização das forças militares dos Estados Unidos a partir de 2001). Hobsbawm nos auxilia na compreensão deste contexto, quando trata da situação estadunidense desde o fim da Guerra Fria até os dias atuais.
Após o fim na União Soviética, em 1989, a bipolaridade política que estremeceu o mundo, durante décadas de ameaça nuclear, tinha dado lugar a um mundo gerido por apenas uma grande potência: os Estados Unidos. Nenhum outro país tinha a capacidade ou sentia a necessidade de ocupar este lugar, como explica Hobsbawm em A Era dos Extremos:
A Rússia fora reduzida ao tamanho que tinha no século XII. (...) A Grã-Bretanha e França gozavam apenas de um status puramente regional, o que não era ocultado pela posse de armas nucleares. A Alemanha e o Japão eram sem dúvida “grandes potências” econômicas, mas nenhum dos dois sentira a necessidade de apoiar seus enormes recursos econômicos na forma militar, na forma tradicional, mesmo quando tiveram liberdade para fazê-lo (...) (HOBSBAWM, 1995, p.538).
A aparente sugestão de uma época de paz, tão esperada, deu lugar a operações militares quase incontroláveis na Europa, Ásia, África e em partes do Pacífico. É o que Hobsbawm explica em seu capítulo Sobre o fim dos impérios na obra Globalização, Democracia e Terrorismo e também em Rumo ao Milênio, na Era dos Extremos. Embora não fossem classificadas como “guerras” internacionais ou civis, na concepção clássica, os habitantes de lugares como Oriente Médio, Angola, Libéria, entre outros, dificilmente sentiam-se em tempos de paz. Por isso, para o historiador, a guerra não desaparecera, apenas mudara.
Outra forte característica do fim do século passado, destacada por Hobsbawm e importante para a discussão do tema do tempo presente, é a “democratização ou privatização dos meios de destruição, que transformou a perspectiva da violência e depredação em qualquer parte do globo”. Hobsbawm destaca esta última parte da frase, por um motivo interessante: até então, os Estados Unidos não tinham sido vítimas em seu território nacional de grandes tragédias bélicas. O fim do século XX se iniciam as tentativas de ataque aos Estados Unidos e ao World Trade Center. Os ataques ao World Trade Center e ao Pentágono, como já mencionado, chocaram o mundo e possibilitaram aos Estados Unidos o desenrolar de uma forma de dominação bélica em nome da manutenção da paz e responsabilidade de declarar “guerra ao terror”. Hobsbawm alertou que era preciso “resistir à retórica do medo irracional com a qual os governos do presidente Bush e do primeiro-ministro Blair buscam justificar uma política imperial para o mundo”. Explica que, proporcionalmente, esses grupos terroristas afetam de forma mínima no risco de vida do ponto de vista estatístico e que “a menos que esses grupos ganhassem acesso a armar nucleares (...) o terrorismo pede cabeça fria e não histeria” (HOBSBAWM, 2007, p. 46).
A busca pelo fim do “terror” e a interminável guerra contra o “mal” custou aos Estados Unidos um orçamento injustificável aos olhos dos cidadãos estadunidenses. O atual presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, contou com o apoio dos eleitores sob a promessa de retirar as tropas do Iraque e reduzir drasticamente os custos militares. A crise econômica de 2008 que se estende até os dias atuais é outro fator que provoca impaciência e intolerância nos estadunidenses. Em entrevista à Folha de São Paulo, antes mesmo da crise econômica, em 2007, Hobsbawm já alertava a fragilidade da situação. Defendia que o império dos Estados Unidos não continuaria reinando por algumas razões, mas principalmente por questões internas, que “a maior parte dos americanos não quer saber de imperialismo e sim da sua economia interna” que se demonstrava frágil, e que os planos de dominação teriam que ceder às preocupações econômicas (MARTINS, 2010, p. 85).
O que não estava claro, no entanto, no início do milênio, eram as possibilidades que o governo dos Estados Unidos havia vislumbrado com os ataques terroristas e a suposta “guerra ao terror”. Em uma entrevista ao Estadão, em setembro do ano passado, Hobsbawm deixa claro que os EUA tinham visto ali uma grande oportunidade de “espalhar e reforçar bases militares americanas” e territórios considerados estratégicos e que a guerra do Iraque nada tinha a ver com a Al-Qaeda.
Na mesma entrevista, Hobsbawm indica que os Estados Unidos estão se guiando para uma inevitável queda do império, nessa busca já sem muito sucesso pela hegemonia:
As guerras dos últimos dez anos demonstram como vem falhando a tentativa norte-americana de consolidar sua solitária hegemonia mundial. Isso porque o mundo hoje é politicamente pluralista, e não monopolista .
Concluo com uma citação da entrevista, onde Hobsbawm deixa uma mensagem aos jovens historiadores de hoje, que iniciam sua trajetória acadêmica:
Hoje pesquisar e escrever a história são atividades fundamentais, e a missão mais importante dos historiadores é combater mitos ideológicos, boa parte deles de feitio nacionalista e religioso. Combater mitos para substituí-los justamente por história, com o apoio e o estímulo de muitos governos, inclusive.